Seguro de Vida – Pagamento de Indenização à perda da existência independente do segurado

“Publicado em 21/10/2021 por Migalhas”

STJ reconhece em repetitivo a legalidade de cláusula que condiciona o pagamento de indenização à perda da existência independente do segurado nos contratos de seguro de vida em grupo com cobertura de invalidez funcional – IFPD.

A Segunda Seção do STJ havia afetado o tema relacionado à garantia adicional de invalidez funcional permanente e total por doença (“IFPD” ou “IPD-F”) em seguro de vida em grupo à sistemática de Recursos Repetitivos (Tema 1.068), selecionando, como representativos de controvérsia, o REsp 1.845.943/SP e o REsp 1.867.100/SP.

A Tese sugerida pelo Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva foi aceita pela Segunda Seção e fixada nos seguintes termos:

“Não é ilegal ou abusiva a cláusula que prevê a cobertura adicional de invalidez funcional permanente total por doença (IFPD) em contrato de seguro de vida em grupo, condicionando o pagamento da indenização securitária à perda da existência independente do segurado, comprovada por declaração médica”.

Tal entendimento se deu de forma inaugural em 2015, em acórdão prolatado no REsp 1.449.513/SP, também de relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, e foi paulatinamente reiterado por inúmeros julgados da Corte, sem a mínima dissidência, em franca confirmação e consolidação do entendimento no âmbito das 3ª e 4ª Turmas do STJ.

Entretanto, em inúmeros juízos das instâncias ordinárias remanescia posição contrária, invariavelmente fundada em racional de abusividade de cláusula que restrinja a hipótese de cobertura de invalidez funcional permanente total por doença a estado clínico que resulte em perda da existência independente do segurado, consistente na incapacidade que inviabilize o pleno exercício das relações autonômicas de forma irreversível.

Por vezes, como suporte à tese de ilegalidade e abusividade da cláusula, tais decisões também se assentavam equivocadamente no fato do segurado estar aposentado pelo INSS por invalidez, o que tornaria imponível a indenização prevista no contrato de seguro privado.

Ante a ausência de força vinculativa daquelas decisões do STJ, natural que continuassem a afluir à Corte recursos estimulados pelo dissenso em primeiro e segundo graus, drenando recursos e tempo que a Corte poderia dedicar com mais eficiência ao saneamento de seu vasto acervo, em causas que ainda merecem construção de consenso dos Ministros.

A inobservância da orientação do STJ consistiu, assim, em verdadeiro incentivo à litigiosidade, influindo definitivamente no comportamento dos jurisdicionados dispostos a tentar a sorte nas instâncias ordinárias.

Esse cenário ensejou que, a partir de 2016, o ora subscritor, à época representando diretamente conglomerado de relevo, formulasse em algumas oportunidades pleito junto aos Ministros da 3ª e 4ª Turma do STJ para que o tema fosse afetado como representativo de controvérsia, uma vez que o art. 927, III do CPC então recém entrado em vigor, impõe às instâncias inferiores observar decisões vinculantes do STJ.

A afetação do tema, entretanto, tardou a se implementar, vindo a ocorrer efetivamente apenas, mas em tempo, em 2020, quando, reconheça-se, ainda mais maturada e sedimentada a matéria naquela Corte.

Pois bem. Antes tarde que nunca, no REsp 1.845.943/SP, um dos dois recursos afetados sob a égide do Tema 1.068, o autor intentava indenização securitária com lastro em apólice de vida em grupo, por entender-se inválido.

A tese de defesa apresentada aduziu que a invalidez do autor não se enquadrava no conceito contratual e regulatório de invalidez funcional permanente e total por doença (“IFPD” ou “IPD-F”), que pressupõe, nos termos do art. 17 da Circular SUSEP 302/05, a perda da existência independente do segurado que inviabilize, de forma irreversível, o pleno exercício de suas relações autonômicas.

A assertiva da defesa foi corroborada por prova pericial médica, em que se baseou a sentença de improcedência, eis que o estado clínico do autor não se amoldava à hipótese de risco contratado, vale dizer, de invalidez funcional. Não bastava a mera invalidez laborativa, cujo risco pode até ser contratado junto às seguradoras que o disponibilizem (ILPD – Invalidez Laborativa por Doença). Esse, porém, não era o caso dos autos.

No entanto, o TJ/SP reformou a sentença para impor a indenização à seguradora, ao fundamento de que a cobertura deve abranger a invalidez laborativa, considerando, à luz do CDC, abusivo e ilegal o limite de cobertura contratado.

Em razão de tanto, o recurso especial, que a posteriori viria a ser afetado juntamente com o de n.º 1.867.199/SP, foi manejado com lastro nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, dada a franca violação aos artigos 421, 757 e 760 do CC, e art. 51, IV do CDC.

No que concerne ao REsp n.º 1.867.100/SP, deu-se da mesma forma, com a sentença de improcedência sendo reformada pelo TJSP, para condenar a seguradora a indenizar fora dos contornos do risco contratado, tanto em razão de ser por demais restritiva a cláusula contratual sub-judice, como ainda pela limitação laborativa da doença que acometia o autor, já que o INSS reconhecera seu estado de invalidez. Impôs-se, da mesma forma, o recurso extremo a STJ.    

Vale a reflexão de que, em linhas gerais, a orientação firme e remansosa dos Tribunais Superiores deveria, em tese, ser seguida pelas demais Cortes da Federação, assim como pelos juízos singulares, o que não implica nenhuma espécie de perda de autonomia dos órgãos jurisdicionais. Ao contrário, significa aumento da previsibilidade de suas decisões e, portanto, incremento da eficiência do Poder Judiciário na gestão de acervo monumental de processos que evidencia a sociedade brasileira como uma das mais litigiosas de que se tem notícia.

No caso sob comento, fez-se necessário lançar mão do artifício processual da afetação de recursos representativos de controvérsia para pacificar a divergência que se dava nas instâncias inferiores, a despeito da clara orientação que há anos emanava da Corte Superior.  

O STJ, assim, veio a se desincumbir da tarefa, e com louvor. Facultou à Defensoria Pública da União, ao Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e à Superintendência de Seguros Privados – SUSEP manifestarem-se na condição de amici curiae, franqueando a posteriori à Federação Nacional de Previdência Privada e Vida – FENAPREVI o ingresso nessa mesma condição. 

A Corte julgou em linha com o quanto já vinha decidindo desde 2015 e, para além de fixar a tese e resolver a controvérsia nos dois casos concretos afetados, reafirmou premissas e delineou ainda, de forma clara, o entendimento da Corte sobre temas fronteiriços e correlacionados, de modo a servirem de farol aos julgadores de todas as instâncias acerca de temas infraconstitucionais:

reconheceu a competência do órgão regulador, na medida em que lastreou os acórdãos em contornos conceituais e normativos emanados da SUSEP e do CNSP, que são extensão do Poder Executivo, citando a nota de esclarecimento do Decreto-Lei 73/1966 sobre a função regulatória da SUSEP, e reafirmando, assim, a noção de tripartição de poderes essencial ao bom funcionamento do Estado;
distinguiu as espécies de cobertura para invalidez laborativa e funcional, à luz dos parâmetros fixados nos art. 15 e 17 da Circular   SUSEP 302/2005;
ratificou entendimento de  que eventual aposentadoria pelo INSS não garante  direito automático à indenização de seguro contratado com empresa privada;
reiterou que o magistrado deve se valer da perícia médica para atestar a natureza e o grau de incapacidade para o correto enquadramento da cobertura contratada, nos termos do art. 5°, § 1º da Circular SUSEP 302/2005;
e reafirmou entendimento da Corte, exarado nos Recursos Especiais de n.º 1.825.716/SC1 e n.º 1.850.961/SC2,  de que o dever de informação sobre abrangência e exclusões de cobertura em seguro de vida em grupo cabe ao estipulante, no momento da adesão do segurado.
Enfim, o Superior Tribunal de Justiça procedeu como se esperava de uma Corte, cuja finalidade precípua consiste em harmonizar a interpretação da lei federal infraconstitucional, ainda que tenha sido preciso se valer de procedimento atributivo de força vinculante aos seus julgados, para que sejam observados pelas instâncias ordinárias.

Por fim, reafirmou os termos do artigo 757 do Código Civil, segundo o qual é da essência do contrato de seguro a predeterminação dos riscos a serem assumidos pelo segurador em função de prêmio a ser pago pelo segurado, o que afasta a noção de abusividade e ilegalidade de cláusulas restritivas de cobertura que vinha justificando o dissenso jurisprudencial, a despeito da matéria já pacificada, porém sem a força vinculante de que agora se reveste o entendimento da Corte.


1 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA, COM BASE EM CONTRATO DE SEGURO DE VIDA EM GRUPO. CONTROVÉRSIA CONSISTENTE EM DEFINIR DE QUEM É O DEVER DE INFORMAR PREVIAMENTE O SEGURADO A RESPEITO DAS CLÁUSULAS RESTRITIVAS DE COBERTURA FIRMADA EM CONTRATO DE SEGURO DE VIDA EM GRUPO. ESTIPULANTE QUE, NA CONDIÇÃO DE REPRESENTANTE DO GRUPO DE SEGURADOS, CELEBRA O CONTRATO DE SEGURO EM GRUPO E TEM O EXCLUSIVO DEVER DE, POR OCASIÃO DA EFETIVA ADESÃO DO SEGURADO, INFORMAR-LHE ACERCA DE TODA A ABRANGÊNCIA DA APÓLICE DE SEGURO DE VIDA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. (Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 12/11/2020).

2 RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VIDA EM GRUPO. ESTIPULANTE. REPRESENTANTE DOS SEGURADOS. RESPONSABILIDADE DE PRESTAR INFORMAÇÕES AOS ADERENTES. INVALIDEZ PARCIAL. DOENÇA OCUPACIONAL. RISCO EXCLUÍDO NA APÓLICE COLETIVA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. (Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, j. 31/8/2021)

Miguel Cordeiro Nunes


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